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No último Verão perdemos um pouco a cabeça e andamos a petiscar pelo Norte de Espanha até chegarmos ao destino final: San Sebastián. Podem perguntar, mas porquê esta cidade? Não é segredo…
A cidade de San Sebastián (ou Donostia) fica localizada na Comunidade Autónoma do País Basco, ou simplesmente País Basco, no norte de Espanha. Para além de estar situada numa baías estonteante, rodeada de águas azul-turquesa, ser rica em cultura e tradições, é também um dos melhores locais para se comer na Europa, e provavelmente no Mundo. Não acredita? San Sebastián tem a maior concentração de bares no mundo. San Sebastián tem também um dos maiores rácios de estrelas Michelin por metro quadrado… Arzak, Akelaré, Mugaritz, Martin Berasategui, e por aí fora. Uma coisa é facto: esta cidade respira gastronomia.
Enquanto a maioria da Espanha está preocupada com as tapas*, os bares do País Basco focam-se nos pintxos, pequenas porções de comida (nem sempre) colocadas em fatias de pão (*também se podem encontrar pinchos noutras partes de Espanha). A cultura casual de San Sebastián envolve o ritual de caça ao pintxo: correr de um bar para o outro e escolher a especialidade da casa, ladeado de uns copos de vinho txakoli (da região), sidra ou cerveja, e uma conversa alegremente ruidosa com amigos e família. Em certos dias da semana, alguns bares adoptam o pintxo-pote, onde uma pequena bebida e um pintxo são combinados a um preço atraente (1-2€).
Vimo-nos perante um ambiente utópico: boa comida e comida boa por todo o lado. Como estávamos alojados na Parte Vieja, concentrámos maiores esforços para satisfazer o nosso apetite por essa zona. Porém nem sempre correu como queríamos, isto apesar de os espanhóis terem horas estranhas para se alimentarem — o que até poderia aliviar alguma pressão — sair para comer no pico do almoço ou do jantar facilmente se torna num exercício infrutífero. Mesmo que um dos nossos defeitos seja a atracção por sítios a abarrotar de locais, isto nem sempre se revelou opção, por isso havia que seguir para o próximo destino, o que vezes demais nos colocou a percorrer as ruas labirínticas que nos traziam de volta ao local de partida. Chamemos-lhe o labirinto Basco. Foi neste jogo que acabámos por descobrir outros locais emblemáticos, e apesar de ter demorado, com o tempo tornámo-nos mais espertos.
Começámos esta partilha por aquele que foi o mais memorável e que melhor ilustra esta comoção, o Bar Néstor. Porquê memorável? Primeiro, porque só conseguimos entrar depois de o rondarmos durante dois ou três dias, quando finalmente percebemos que chegar 30-40 min antes de abrir seria a solução (eureka!). Segundo, por causa do tomate. E terceiro, pelo txuleton.
O Bar Néstor é ultra-especializado, ou seja, são absolutos especialistas nos meros 4 pratos que servem. Pimentos de Padrón, salada de tomate, tortilla e txuleton. Tudo isto obedecendo a uma máxima que resulta: manter o processo simples e deixar o produto brilhar. É difícil adivinhar quão especial um local pode ser, principalmente quando a única coisa que revela é um letreiro em madeira com o seu nome inscrito.
Um aviso para os incautos: tal como Eça escrevia de pé, em San Sebastián o mesmo ritual acontece com a comida. E o Néstor não é excepção.
Com a abertura da porta entra-se a pisar a serradura acabada de polvilhar (algo que já se perdeu por cá) e lá está o reduzido staff a preparar o campo de batalha. Aí começa o entusiasmo e a espera. Isto porque a primeira coisa a sair da cozinha é a tortilla, que já tem destino traçado. O único contentamento que nos sobrou foi mirá-la. Mesmo antes das portas terem aberto, já tinha donos. Só há uma por refeição, o que dá uma dúzia de fatias para uma dúzia de antecipados que a reservem; se falharem a chamada, a fatia segue para o próximo. Nessa altura ainda não tínhamos esse conhecimento, e por isso não estávamos na lista VIP. É que convém saber que a tortilla do Sr. Néstor já atingiu o patamar de criatura mítica, inatingível, pródiga, o corno de um unicórnio numa noite estrelada. Era bela… enfim.
A outra especialidade: a salada de tomate. Não devíamos ter pedido uma dose dupla, mas ainda bem que a pedimos. Maduros e suculentos tomates coração de boi que só se faziam temperar de azeite e sal. É muito esclarecedor o grau de perfeição que algo pode atingir quando se cumprem dois critérios: sazonal e simples. Não lhe mexam, deixem-no ser o que é. E é assim que uma simples salada de tomate preenche a alma.
Chegou a nossa vez no talho. Exibiram-nos dois costeletões de gado Galego velho, pesaram-se, ficamos com o da direita. Nada os podia distinguir a não ser a balança que marcava 39€/kg – uma pechincha para o que veio a seguir. Uma capa amarela de gordura recobria o músculo bem vermelho, enriquecido por um decente marmoreado. Voltando à ordem cronológica dos eventos, foi nesta altura que ficámos a conhecer a incrível salada de tomate que tão bem nos entreteve durante a espera. Mas não tardou assim tanto o fumegante prato quente encimado pelo txuleton fatiado. Uma imponente visão edível com a qual tivemos que batalhar até ao fim, mas conseguimos, toda a gente consegue. Durante a batalha conquista-se o intenso caramelizado do exterior, o fumado do carvão, a sedosa gordura derretida, e uma carne saborosa de gado bem alimentado e bem-criado.
Não há mais como o descrever esta refeição senão chamar-lhe de lição, porque para menos poder ser mais é preciso uma especial dedicação e veneração ao produto na sua forma pura.
Mas quando se anda à caça de pintxos, uma refeição completa não é o objectivo. Vagueia-se e entra-se num bar, pede-se um pintxo ou dois, seguido de uma bebida e está feito, procura-se o próximo. Contudo, por vezes ficamos presos a um local que não nos consegue enfadar, talvez porque fica aberto até mais tarde, ou porque nos satisfaz profundamente. Isto aconteceu-nos com o Bar Sport, outro tasco da Parte Vieja. Não sei precisar quantas vezes lá ancoramos o nosso estômago. Mas tal se deve a três razões: variedade, qualidade e preço. Por baixo de uma pintura de remadores Bascos, surge um balcão repleto de pintxos de todas as formas e feitios. E nas nossas visitas, provámos bastantes.
Começámos muitas vezes com um clássico, a Gilda, uma guindilla (pimento verde) entrelaçado numa anchova e numa azeitona. A Gilda pode ser encontrada em quase todos os bares, e é um acepipe fresco e salgado que ajuda a mobilizar o apetite para o resto da refeição. Isso, e a típica croqueta de jamón, que numa dentada nos rodeia de um bechamel sedoso e fumado por pequenos pedaços de presunto. De outros destacam-se também a inesquecível foie a la plancha, que abençoou as nossas papilas gustativas com uma textura redonda e untuosa, oriunda de uma gordura bem derretida e complementada por uma caramelização exemplar.
O crema de erizo (creme de ouriço-do-mar) com caviar de salmão iludiu os sentidos como um salto no mar, mas muito mais cremoso e amanteigado. Outra escolha foi o crepe de hongos, um crepe fino a rebentar de creme de cogumelos selvagens; bom, mas meigo. Por outro lado, a comida de conforto em pequena escala também tem o seu papel e por isso pedimos a carrillera de ternera, uma bochecha de vitela estufada lentamente em vinho, acompanhada de puré. A bochecha estava tenra ao ponto de se desfazer com o garfo, e infundida de tal forma no molho que se esvaía em sensações de Inverno em pleno Verão. Surgiu também o txangurro al horno, uma sapateira no forno, servido com um pedaço de baguete, que trouxe notas marinhas reconfortantes mas com ausência de sabores mais profundos. Experimentámos uma miríade de outros pintxos como paté de sapateira, salmão fumado, jamón y brie, boquerones… Tudo fresco, e recomendável. De quando em vez passávamos por lá e pedíamos apenas uns pedaços de tortilla cremosa. Em suma, o Bar Sport foi o fiel amigo em que confiámos muitas, muitas paragens.
O La Viña foi outro ponto de caça na Parte Vieja. Este bar tem muita comida para oferecer, mas focámo-nos no que tínhamos ouvido: o premiado canutillo de queso y anchoa, um cone de bolacha fina recheado com queijo creme e uma anchova estupenda, e a aclamada tarta de queso (cheesecake). A fama da tarta de queso é bastante óbvia: havia uma pilha de mais de 20 tartas pousadas no balcão e em prateleiras, muitas ainda a libertar vapor. O canutillo foi uma experiência em textura, vincadamente crocante, em contraste com o aveludado do queijo creme e o intenso salgado da anchova, tudo tão apetitoso como tínhamos imaginado. A tarta de queso foi uma agradável surpresa, pois ainda não tínhamos visto muitas sobremesas. A primeira garfada mostrou uma suave cremosidade, combinado de um sabor delicado e macio de que só se gabam os produtos lácteos exímios, num perfeito equilíbrio entre doce e salgado. Foi sem dúvida a melhor sobremesa da viagem, e compreende-se porque é que muitos lhe chamam a melhor tarta de queso de toda a Espanha.
Por outro lado, não tivemos vergonha em sucumbir ao pecado e pedir uns pratos de mexilhões na muito popular e muito caótica La Mejillonera. Dir-se-ia que é quase uma espécie de fast-food para comer mexilhões, calamares e patatas bravas afogadas em molho. Quanto aos mexilhões, o destaque segue claramente para os tigres, submersos num molho de tomate algo picante, mas também surgem outras variedades como vinagreta, maionese, ou ao vapor. Outra opção muito popular é a Juantxo Taberna, uma casa com 80 anos de história que se especializa em tortilla, na forma de pintxo ou bocadillo (sanduíche). Os locais formam fila para a levar para casa ou saciar a fome a qualquer hora do dia. No nosso caso, pedimos um par de bocadillos e duas cervejas. A tortilla era cremosa e mal passada, como se espera, e fez valer o repasto. Contudo, a dose era tão grande que nos manteve confortavelmente saciados durante várias horas.
Se quisermos ser justos devemos mencionar que a Parte Vieja é apenas uma pequena parte da cidade. Passámos a maioria do nosso tempo a vaguear por aí pois ficava próximo ao nosso hotel. No entanto, há muitos outros bairros que merecem ser explorados, como o Antiguo e Gros, nos quais nos aventuramos algumas vezes. Quando nos misturámos na movida das ruas de Gros, encontrámos aquilo que se esperava: restaurantes e bares por toda a parte. Aqui, a caça aos pintxos era mais fácil do que na Parte Vieja, pois havia menos confusão e mais espaço onde caber. Mas não se preocupem: está lá toda a gente a comer, a dada altura vai ficar um pouco apertado. No Bergara capturámos pintxos elaborados, com recheios como atum fresco picado, salmão fumado ou anchova do Cantábrico.
O nosso primeiro poiso foi até a Bodega Donostiarra, onde bebemos uma boa sidra servida de forma tradicional (bem alto!), um completo (sanduíche de atum e guindilla), morcilla (morcela) e uma salada de polvo. A um primeiro olhar a escolha do completo poderia parecer escusada, no entanto, as vozes que em coro soavam “Completo, completo!” fizeram-nos pensar duas vezes. E o completo acabou por ser o favorito do lote; uma baguete estaladiça recheada com maravilhoso atum, cujas lascas eram temperadas no próprio azeite da lata e com o vinagre e picante das guindillas. A morcela era saborosa, mas ainda tínhamos em mente a experiência paranormalmente boa da morcela do La Bicha, em Léon. Mas isso dava outra história.
Termina assim o nosso pequeno resumo de algum dos destaques da nossa aventura gastronómica em San Sebastián, mas esperamos poder voltar e provar muito mais. São tantos os locais emblemáticos que ficaram por experimentar. E quem sabe o que encontraremos noutros bairros. Esta incursão permitiu-nos começar a entender uma incontornável e obsessiva cultura gastronómica baseada em tradições mas também inovação. A maior lição que aprendemos foi esta: procura os ingredientes locais mais frescos e trata-os com respeito.
Queríamos também agradecer ao Vasco Coelho Santos do Euskalduna Studio a sua amabilidade em nos ter dado sugestões de locais para comer em San Sebastián—não poderiam ter sido melhores.
Quer saber mais sobre San Sebastián? Fique atento para a Parte I! **
** Eu sei que a Parte II veio primeiro, mas a escrita funciona de maneira misteriosa e nós somos os editores.
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