A receita do pastel de Tentúgal terá nascido algures no século XVI, pelas mãos das freiras carmelitas do convento da Nossa Senhora do Carmo (ou Natividade) de Tentúgal. Nessa época, a vida monástica era o destino para muitas jovens da fidalguia. Argumenta-se que as origens favorecidas dessas irmãs levavam a que migrassem para o convento receitas de casa, e também as criadas que as sabiam fazer.

Com essa herança propiciou-se que, nos intervalos das actividades religiosas, surgisse uma azáfama culinária, já que o convento contava com mais de trinta cozinhas. Lá, com todo o tempo do mundo, e também com o incentivo da produção agrícola do convento e o acesso a especiarias e ao açúcar, as freiras tinham asas para explorar a arte doceira. A doçaria viria a tomar não só o lugar de ocupação, mas também de sustento e de agradecimento de ajudas. Porém, as carmelitas de Tentúgal criaram algo que ultrapassou a doçaria conventual convencional. Criaram uma técnica que é, simplesmente, um espetáculo gastronómico.

via YT

A receita do pastel foi segredo interno transmitido por tradição oral até à extinção do convento e à morte da última freira, em 1898. Mas alguém — uns dizem a última irmã, outros dizem uma criada — quis assegurar-se de que a receita perduraria, e passou-a às mulheres de Tentúgal, que a preservaram até aos dias de hoje.

Quando observamos um pastel de Tentúgal, salta-nos à vista a sua massa fina e quase transparente, que em aparente fragilidade segura um sublime recheio de ovos moles. Ao provar, é ligeiramente crocante e desfaz-se na boca. Um deleite, que ainda mais intrigante se torna quando observamos o mais belo elemento da sua confecção: o estender da massa

Mas qual será o segredo desta enigmática massa, cuja elasticidade quase parece não ter limites? De acordo com quem faz os pastéis, o segredo está na  farinha, nas mãos, e também no clima.

Falemos então de um dos mais importantes componentes da alimentação humana. Da farinha conhecem-se várias constituições e moagens, conseguindo-se assim massas muito distintas. As farinhas são constituídas essencialmente por hidratos de carbono (amidos), e em menor parte por fibras e proteínas. A importância do conteúdo proteico não pode ser desprezada, antes pelo contrário. Vejamos, uma farinha com alta percentagem de proteína tornará a massa mais elástica, e perfeita para pães e massas de pastelaria. Por outro lado, se a percentagem de proteína for mais reduzida, a massa torna-se mais fofa e ideal para bolos, bolachas e tartes. Como se explica este fenómeno?

No trono das farinhas, senta-se a de trigo. É de eleição por uma simples razão: é rica em proteínas formadoras de glúten, e isso permite-lhe crescer. Muito. Isto porque a quantidade de proteína na farinha é sensivelmente proporcional à quantidade de glúten. Mas nem todas as farinhas de trigo são iguais, sendo que as de trigo duro (Triticum durum) têm mais proteína do que as de trigo mole (Triticum aestivum). Este derivado de trigo é de facto um dos grandes segredos do pastel de Tentúgal. Sabemos, contudo, que a maioria das produções utiliza flor de farinha especial, com a moagem mais fina e refinada (T45), ideal para pastelaria especializada. Do convento sobreviveram registos do uso de peneiras de seda, o que deixa uma ideia de quão fina tem de ser.

As farinhas de outros grãos, como de aveia, milho e arroz revelam-se infrutíferas no campo da elasticidade, uma vez que não contêm glúten, e por isso são não se adequam a este uso, pelo menos quando usadas sozinhas.

O GLÚTEN E A ELASTICIDADE

O glúten é descrito pela primeira vez no século VI na enciclopédia agrícola chinesa Qimin Yaoshu, e é mais tarde referido pelos chineses como o “músculo da farinha”. Tal designação vem pelo facto de terem observado as fantásticas propriedades mecânicas do glúten: a plasticidade e a elasticidade.

O glúten forma-se quando duas proteínas presentes na farinha, a glutenina e a gliadina, entram em contacto com água. Na presença de água, as elásticas gluteninas ligam-se infinitamente e formam cadeias enormes. As plásticas gliadinas também se encadeiam, e ligam-se fracamente umas às outras e às cadeias de glutenina. A este conjunto dá-se o nome de rede de glúten, que podemos imaginar como um novelo imenso de cadeias desorganizadas.

© Scribner

Quando se mistura a farinha com água, inicia-se a hidratação e a autólise. A hidratação é fundamental no fortalecimento e alongamento dos fios do novelo, formando uma rede coesa. Já a autólise ocorre durante o descanso da massa, que no caso deste pastel será de cerca de hora e meia, e onde se observa a actividade de enzimas que cortam as proteínas grandes em cadeias mais pequenas, e mais fáceis de manipular.

Quando a matriz de glúten está suficientemente desenvolvida, chega o momento de a organizar. Domar o glúten faz-se simplesmente pelo amassar da massa, e dessa forma alongam-se e ordenam-se as cadeias de glúten lado a lado, para que a massa fique maleável e estique. A prova dos nove é quando ela estica o suficiente para que seja possível ver-se através dela. Na sua transparência, vê-se claramente a rede de glúten. Está tudo pronto para a fase mais impressionante: o esticar.

UMA MASSA QUE LEVITA

Aqui, Tentúgal torna-se um fenómeno único. O ritual começa quando uma senhora trajada de branco caminha descalça sobre um grande lençol a braços com um tabuleiro metálico redondo. Eis que desenforma no chão um grande pedaço de massa. A passo ritmado, pega nos bordos e estica-a. Enquanto isso, certifica-se que o ar fica preso no meio da massa, formando uma bolha. Dando-lhe um tempo, a senhora volta e estica que estica, a massa parece que levita. A bolha inquieta fica de tal forma grande que cada vez que levanta a massa, parece que estende um lençol bege ao vento. Ei-la então… massa que chegue para quinze ou vinte pessoas deitadas, tão fina quanto papel. Assim se cria um dos mais fascinantes intervenientes da doçaria conventual portuguesa, que pode mesmo chegar a uma espessura de apenas 0,06 mm.

O clima é também uma componente vital na relação das pasteleiras com a massa. A influência marítima sobre Tentúgal traz temperaturas amenas, que facilitam a manipulação. Por outro lado, quando o tempo se mostra quente e seco remove humidade à massa, que terá tendência a rasgar.

A massa seca à temperatura ambiente (ou com a ajuda de um maçarico), e depois é delicadamente cortada com uma faca em círculos ou meias-luas. Segue depois para a confecção, onde o pastel é armado. Deste pastel conhecem-se duas formas, o palito e a meia-lua. As sábias pasteleiras demoram poucos segundos a untar duas folhas de massa com manteiga (usando uma pena de galinha ou peru), recheando-as depois com um pouco de massa partida e ovos moles, fechando depois o palito com pontas em bico. Já para as meias-luas o processo é semelhante, mas no recheio adiciona-se também amêndoa em pó ou granulada. Acredita-se que esta diferença nos recheios se deva ao destino original dos pastéis quando eram feitos no convento. Os palitos com ovos destinavam-se aos enfermos e pobres (os ovos moles eram considerados um alimento para os convalescentes), e as meias-luas eram oferecidas aos patronos do convento. Segue-se o forno, e por fim, o apetite alheio.

O debate sobre a origem da massa do pastel de Tentúgal mantém-se. É possível, e até muito provável, que a sua existência tenha como origem a influência árabe, dada a semelhança à massa filo. Acredita-se que a massa filo terá sido desenvolvida pelos Turcos, que a terão transportado através do império Otomano. Vemos a filo e as suas adaptações na baklava, no strudel e na spanakopita, entre outras iguarias. Terá esta massa aparecido espontaneamente em dois locais distintos e distantes – na Turquia e em Tentúgal? Terão os séculos de domínio mouro em Coimbra sido a porta de entrada para a base desta massa? Uma coisa é certa: a genialidade da técnica das carmelitas de Tentúgal torna-a absolutamente única, e foi aperfeiçoada e transformada em arte durante mais de quatrocentos anos.

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