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Os alimentos fermentados estão na moda — não há como não reparar. Isto até poderia ser considerado uma coisa banal, se pensarmos que os seres humanos utilizam a técnica da fermentação há vários milénios e que uma grande porção das coisas que comemos todos os dias (tais como o pão, queijo, iogurte, cerveja e vinho) são fermentadas. A história da fermentação é, portanto, muito antiga. No entanto, a ciência por trás da fermentação – a zimologia – só foi alvo de estudos intensivos a partir do século XVIII com os ensaios químicos de Antoine Lavoisier, e um século mais tarde com a descoberta do papel das leveduras na fermentação alcoólica por Louis Pasteur, e a revelação da importância das enzimas contidas nas leveduras feita por Eduard Buchner.
A fermentação consiste na actividade de microorganismos (fungos ou bactérias) que proliferaram num determinado alimento, consumindo alguns dos nutrientes para obtenção de energia. Essa reacção é mediada por enzimas que hidrolisam as proteínas, lípidos e polissacarídeos do alimento, convertendo-os em moléculas diferentes, mais aromáticas e saborosas, e produzindo compostos como o etanol, o acido láctico ou o ácido acético. Estes últimos são vitais na protecção do alimento fermentado da acção de microorganismos nocivos. Pode não querer pensar assim, mas a fermentação é efectivamente um apodrecimento controlado do alimento. O resultado é, no entanto, delicioso e útil.
Mas para além de tornar as coisas mais saborosas, a fermentação tem mais algum propósito? Claro que sim. Algumas das vantagens são a possibilidade de estender o tempo útil dos alimentos (basta pensar nas grandes viagens das naus, ou travessias no deserto), especialmente em climas desfavoráveis, mas também a destoxificação de certos compostos, a inibição de crescimento de agentes patogénicos, a preservação das vitaminas, e o enriquecimento nutricional do alimento através da simplificação das moléculas e concentração dos nutrientes.
A popularidade de alimentos fermentados outrora largamente desconhecidos tem subido a pique também devido ao interesse e trabalho de vários chefs e personalidades que têm investido o seu tempo na descoberta deste mundo maravilhoso. O reinvenção nórdica dos fermentados por restaurantes como o Faviken ou o Noma, o Art of Fermentation de Sandor Katz, o laboratório de fermentação do Momokufu e a propagação das técnicas e culturas de fermentação Asiáticas têm mudado a face da restauração e do consumo privado. Mas não é tudo: a crescente descoberta da importância dos alimentos probióticos para a saúde tem vindo a dar destaque aos fermentados. Vamos então falar de alguns alimentos fermentados que conhece, e de muitos outros dos quais provavelmente nunca ouviu falar. Preparados?
Contents | Conteúdos
AZEITONAS
Mediterrâneo
A azeitona é um fruto que não falta como entrada à mesa portuguesa. Que nunca cometa o erro de comer uma azeitona fresca, colhida da árvore — mais vale chorar. A verdade é que as azeitonas no seu estado natural são intragáveis devido à presença de oleuropeína, um composto fenólico extremamente amargo. Para remover este composto, é necessário curtir a azeitona, que é partida e demolhada numa salmoura que pode (ou não) conter 1-3% hidróxido de sódio, sendo depois trocada várias vezes. Este processo ajuda à ocorrência da fermentação, que é liderada por bactérias ácido-lácticas e eventualmente alguns fungos. Se não houver um tratamento prévio, a fermentação é mais lenta e dominada por fungos, que induzem uma fermentação alcoólica, resultando num perfil sensorial totalmente diferente, mais amargo e frutado.
CACAU E CAFÉ
América do Sul / África
A fermentação é absolutamente indispensável para tornar estes alimentos bebíveis e comestíveis. O cacau, Theobroma cacao, tem os seus preciosos grãos recobertos por uma polpa e guardados dentro de frutos oblongos. Após a colheita, os frutos são abertos e a polpa começa a ser fermentada pela flora microbiana naturalmente presente, durante um período que poderá ir dos 2 aos 8 dias. A fermentação não ocorre nos grãos de cacau mas sim na polpa, onde os nutrientes são consumidos alternadamente por bactérias ácido-lácticas e leveduras. Eventualmente, os produtos químicos da fermentação da polpa perfuraram os grãos de cacau e permitem a entrada de moléculas associadas a aromas frutados e florais. Segue-se depois a secagem, tostagem e moagem do grão. No caso do café (Coffea arabica ou Coffea canephora), existem várias abordagens possíveis para a fermentação, que têm como finalidade facilitar a remoção de partes que recobrem o grão. O método mais tradicional (seco) consiste em secar os grãos de café ainda no fruto ao sol, onde ocorre uma fermentação totalmente aeróbia. Os açúcares presentes no fruto irão permitir o crescimento de uma flora microbiana bastante diversa. Este tipo de fermentação é praticada em zonas onde não costuma chover muito e resulta em cafés com mais corpo e maior complexidade. No método molhado, os grãos já desprovidos do fruto são submersos em água, onde ser iniciará a fermentação. Outro dos métodos é o ‘semi-dry’, onde há uma combinação entre a fermentação molhada e a seca. Não conseguimos encontrar informação concordante quanto ao tipo de fermentação mais comum para o café robusta e o arábica, por isso deixamos o assunto ficar sossegado. Mas se quisermos falar no café mais caro do mundo, o processo é bem diferente. Um pequeno felino, a civeta, que habita florestas tropicais, alimenta-se do fruto do café. O resto já pode imaginar. Durante o processo digestivo o grão do café é submetido a um tipo único de fermentação no tracto intestinal e libertado totalmente intacto pelas fezes. Quem o prova afirma que tem um sabor achocolatado e menos amargo: um quilo de café Kopi Luak pode atingir os 1000€!
CHUCRUTE (SAUERKRAUT)
Europa Central e de Leste
O acompanhamento favorito dos Alemães para as suas adoradas salsichas é mesmo o chucrute (sauerkraut), que é nada mais, nada menos do que couve fermentada. A couve é cortada finamente, sendo depois coberta com sal, prensada e deixada fermentar à temperatura ambiente (21ºC) durante algumas semanas. A acção principal desenvolve-se através da acção das bactérias ácido-lácticas, que produzem ácidos (ácido láctico e acético, por exemplo), esteres aromáticos, gases e pequenas quantidades de álcool. O resultado final é uma couve avinagrada, algo azeda, um pouco salgada e bastante aromática que acompanha bem pratos pesados. Em muitos locais, adicionam-se algumas especiarias ao chucrute durante o processo de fermentação, tais como as bagas de zimbro ou cominho.
KATSUOBUSHI
Japão
O katsuobushi é um produto japonês maravilhosamente elaborado, proveniente de atum bonito (Katsuwonus pelamis). Para o produzir é necessário cozer a parte muscular do atum, que é depois fumada a quente durante vários dias. Eis que chega então a fase em que os pedaços de peixe são inoculados com fungos (ex. Aspergillus spp. e Eurotium spp.) e ficam a fermentar durante algumas semanas. Depois, a peça é seca ao sol e os fungos são removidos. Por fim, o katsuobushi traduz-se numa panóplia de sabores que se descrevem como fumado, salgado, e derradeiramente umami, especialmente devido à pronunciada presença de ácido inosínico. Usa-se, tradicionalmente, na forma de raspas translúcidas para fazer dashi e para temperar outros pratos como o temível ovo centenário (pidan), ramen ou takoyaki.
KEFIR
Norte do Cáucaso
O kefir é um irmão próximo do iogurte, mas um pouco mais ácido, amargo e subtilmente alcoólico. Acredita-se que o kefir tenha como proveniência o norte do Cáucaso. A fórmula é seguinte: leite de vaca, ovelha ou cabra é inoculado com grãos de kefir e deixado a fermentar durante cerca de 24 horas. Simples, não é? Mas o segredo está mesmo nos grãos de kefir. Os grãos de kefir são um complexo simbiótico de leveduras e bactérias ácido-lácticas (ex. Leucnostoc spp., Lactobacillus spp. e Lactococcus spp.), que se encontram inseridas numa matriz de polissacárideos denominada de kefiran. A diversidade de bactérias probióticas que se podem encontrar no kefir levam a que se acredite que o mesmo tenha diversos benefícios para a saúde, sendo alvo de vários estudos na matéria nos últimos anos.
KOMBUCHA
Norte do Cáucaso
Desconhece-se a verdadeira origem desta bebida fermentada à base de chá (verde ou preto), que é consumida há milénios no Japão. O segredo para a elaboração de kombucha está na utilização de SCOBY*, uma cultura simbiótica de leveduras (ex. Sacaromyces spp.) e bactérias (ex. Acetobacter spp.). A adição de SCOBY a chá açucarado leva à fermentação do mesmo, e nas condições certas, tem como resultado final kombucha levemente frisante e ácido, contrabalançado com alguma doçura. Falta mencionar que devido à ocorrência de fermentação alcoólica, a kombucha contém 0.3-0.5% de álcool. *Symbiotic Culture Of Bacteria and Yeast
KIMCHI
Coreia
O kimchi é provavelmente o prato mais icónico para os coreanos: é fruto de tradições milenares. Veio, ao longo dos tempos, tornar-se uma importante fonte de vitaminas, minerais e fibras na dieta coreana. O kimchi pode ser feito com uma grande variedade de vegetais e frutas, ou mesmo cogumelos, dando como exemplo a famosa couve nappa, mas também rabanetes, gengibre, rebentos de soja e melão, entre muitos outros. Naturalmente, há também uma imensidade de estilos diferentes de kimchi. Para a sua preparação é necessário marinar os ingredientes escolhidos numa salmoura durante algumas horas, ou até uma salga a seco, e depois é adicionada uma base em pasta com gochugaru (malagueta em pó), jeotgal (marisco fermentado), cebolinha e outros temperos e deixar fermentar a temperatura baixa durante alguns dias a semanas. A fermentação é levada a cabo pelos microorganismos naturalmente presentes nos vegetais, mas eventualmente dominada por bactérias ácido-lácticas. Resulta, por fim, num sabor intenso, picante, algo doce, bastante salgado, fresco e azedo.
KVASS
Rússia
O kvass é uma bebida tão tradicional e relevante na Rússia que chegou a ser conhecida como a ‘Coca-Cola comunista’. Ironicamente, a própria Coca-Cola já a produz. Há centenas de receitas diferentes mas, genericamente, o princípio do kvass é o uso de pão velho ou seco, em particular pão de centeio, que é colocado num frasco com hortelã, submerso em água fervida e deixado a demolhar durante a noite. O pão é depois descartado, o líquido guardado e adiciona-se massa azeda (sourdough) — que irá promover a fermentação — mel, e por vezes alguma fruta. Depois de fermentar um ou dois dias, o kvass irá estar bastante carbonatado e pronto para engarrafar. No fim, terá um grau alcoólico de 0.5 a 2% e será fresco, frisante, com um sabor a pão e um toque de doçura.
LIMÕES EM CONSERVA (LAMOUN MAKBOUS)
África do Norte / Ásia
Os limões conservados são muito apreciados no norte de África e na Ásia. A preparação é muito simples, sendo os limões lavados, golpeados e cobertos em sal. São então deixados fermentar num lugar quente (ou mesmo ao sol) durante um certo período de tempo, que pode variar entre alguns dias a várias semanas. Antes de usar, lava-se o sal e aproveita-se a casca, que preserva as melhores características aromáticas do limão, mas onde também se desenvolve um paladar umami complexo. Usa-se em sobremesas e para dar complexidade a pratos salgados.
MISO
Japão
A pasta de miso pode ser obtida a partir da cozedura de grãos de arroz, cevada ou soja. A adição de Aspergillus oryzae (koji) é fundamental para iniciar o processo de fermentação. Tradicionalmente, a mistura resultante dessa fermentação — que também se designa por koji — inicia um processo de envelhecimento em barris. Nesta fase, procede-se à adição de sal para inibir a acção do koji, pretendendo-se assim promover a proliferação e fermentação por bactérias ácido-lácticas e de leveduras halotolerantes, que vão aperfeiçoando lentamente o sabor do miso ao modificar diversas proteínas e hidratos de carbono em estruturas mais simples. Concomitantemente, decorre também a reacção de Maillard entre aminoácidos e açúcares redutores, que irá resultar no escurecimento do miso e aprofundamento do sabor. O miso pode ser classificado pela sua coloração, entre o vermelho (akamiso), branco (shiromiso), amarelo ou castanho e também pelos diferentes perfis de sabor que vão desde o doce ao salgado. Variações na estirpe de A. oryzae e na temperatura a que ocorre a fermentação permitem obter diferentes qualidades de miso. O miso é tradicionalmente usado no Japão para fazer sopas, marinadas, molhos e dar sabor a grelhados.
MOLHO DE SOJA
Japão
Muito distante da nossa cultura gastronómica, o molho de soja começou por aparecer discretamente nos restaurantes chineses, e mais tarde nos restaurantes japoneses como companheiro do sushi e sashimi. Mas quando se dirigir ao supermercado para o comprar, pense duas vezes antes de comprar o mais barato. Vejamos porquê. Actualmente, a indústria ligada à produção do molho de soja recorre essencialmente a duas formas de produção. O método mais tradicional consiste num demorado processo de fermentação que envolve feijões de soja, sal e o fungo Aspergillus oryzae. Este método secular consiste numa mistura de soja cozida e trigo tostado, onde é inoculado o A. oryzae (koji). Na primeira etapa da fermentação ocorrem alterações químicas relevantes, nomeadamente a transformação de proteínas em aminoácidos e amido em açúcares mais simples. Na segunda etapa da fermentação, há a adição de uma salmoura à pasta de soja, com o objectivo de inibir os fungos A. oryzae e promover o crescimento de bactérias halotolerantes. Esta é a fase mais longa — poderá durar alguns meses ou até anos — e irá complicar os sabores e aromas, através da produção de ácidos, especialmente o ácido glutâmico, o grande responsável pelo sabor umami. No fim, a pasta obtida terá de ser prensada para obter o molho de soja. O método de produção em massa de molho de soja é unicamente químico. A hidrólise dos feijões de soja mimetiza o papel do koji, e a cor e sabor são conseguidos por aditivos como caramelo e xarope de milho. Contudo, a grande maioria do molho de soja japonês é designada por koikuchi: é obtido por partes iguais de molho de soja obtido pelo processo tradicional e através do processo químico.
NATTO
Japão
O natto está talvez num limbo entre ser a próxima tendência alimentar ou algo de que ninguém quer ouvir falar. É difícil explicar o sabor e textura do natto, logo será mais fácil começarmos pela sua preparação. Produzido há séculos no Japão, apenas é necessário cozer feijão de soja e adicionar a bactéria Bacillus subtillis, que irá transformar por completo o sabor original da soja. A fermentação ocorre aproximadamente durante 24 horas a uma temperatura relativamente alta. Desta fermentação resulta uma agregação de pequenos feijões unidos por um visco capaz de formar uma teia de fios inquebráveis (não será fácil de visualizar, o melhor é focar-se na fotografia). Estes fios transparentes resultam do metabolismo de B. subtillis, algo que se designa por biofilme, e são compostos por cadeias longas de ácido glutâmico e de polissacarídeos. É por isso que os fios do natto são por muitos designados como os verdadeiros fios de umami. Mas não o que tipo de umami com que o comum dos mortais esteja minimamente familiarizado. O natto é habitualmente consumido em saladas, a acompanhar arroz ou até numa tosta com queijo, no entanto, se confeccionado com calor irá perder algum do seu sabor pungente.
PICKLES
Mesopotâmia?
Adiantamos-lhe já que é bem possível que acabe a fazer os seus próprios pickles. Até porque aquele frasco de pepinos em pickle que está esquecido no frigorífico é uma espécie de mentira. Os pickles que muito provavelmente tem consumido resultam da fervura do pepino e adição de uma solução com vinagre, sal e açúcar que preserva e altera o sabor do pepino. A questão é que neste tipo de pickles não ocorre qualquer tipo de fermentação, porque a fervura elimina a flora microbiana que existe no exterior dos vegetais e o vinagre impede futuras propagações microbianas. Para termos um pickle verdadeiro deve-se adicionar os vegetais a uma salmoura que os submerja na totalidade. Depois, as bactérias anaeróbias naturalmente presentes tratarão de dar início à fermentação. Um pickle verdadeiro é apenas ligeiramente ácido (e não avinagrado), devido à fermentação ácido láctica, mas também frutado e muito mais complexo.
TEMPEH
Indonésia
A composição e consistência do tempeh assemelham-se em muito às do tofu. O tempeh obtém-se a partir de uma fermentação de 24 horas de soja branca com o fungo Rhizopus oligosporus ou Rhizopus oryzae em que os filamentos destes fungos se unem e digerem parcialmente a soja. As altas temperaturas e elevada humidade da Indonésia favorecem as condições ideais para a ocorrência natural desta fermentação. Como não é adicionado sal no processo da fermentação, o tempeh é altamente perecível, e por essa razão não sofreu de uma disseminação global tão ampla como outros produtos fermentados da soja. O tempeh tem um sabor que lembra nozes e cogumelos, e é um ingrediente com uma grande plasticidade, pois presta-se a ser grelhado, frito, cozido ou até estufado.