Lê-se em [est_time]
Em meados de Maio de 2016 o Depósito de Sola e Cabedais encerrou as suas portas ao público. O artigo que se segue foi escrito por nós após uma visita ao local uns meses antes do seu encerramento. Convidamos todos à leitura do texto que remete à memória de outros tempos e à realidade do presente.
Deixa agora a sua fachada para a posteridade.
Depósito de Sola e Cabedais Adriano Vieira da Silva Lima & Cª
F. Fernandes Guimarães & Cª Lda.
Rua do Ateneu Comercial do Porto, 45
4000-380 Porto
Tel: 222 089 640
Apesar da cidade do Porto ser hoje um livro aberto, ainda existem locais de surpreendente beleza e tradição que se mantêm escondidos no nosso quotidiano. Os antiquíssimos armazéns Depósito de Sola e Cabedais Adriano Vieira da Silva Lima & Cª, situados na resguardada Rua do Ateneu Comercial do Porto, são um excelente exemplo do bom comércio tradicional no Porto. A empresa foi fundada em finais do século XIX por Adriano Vieira da Silva Lima, notável comerciante e político. Na edição de 2 de Abril de 1917 da revista Ilustração Portuguesa, é dedicada uma peça a este estabelecimento, onde se salientou que “Hoje pode considerar-se, sem receio de exagero, o maior e mais completo não só de Portugal mas de toda a Península.“.
Esta casa é por excelência a principal fornecedora dos sapateiros da cidade e arredores, mas abastecem também uma vasta rede de artesãos que trabalham o couro e o transformam em malas, pastas e outros acessórios.
A sua fachada é famosa entre nós devido ao seu magnífico painel de azulejos, que relata em fundo branco o nome da companhia, rodeado de elementos vegetalistas e revivalistas, encimando um fundo tingido de azul claro. O belíssimo trabalhado do ferro no portão e janelas é acompanhado por vidros tingidos de várias cores, que rejubilam de cor quando a luz os atravessa.
À entrada quase tudo parece conservado no tempo, e recupera-se uma descrição aquando a abertura dos armazéns, em 1917:
“Ao longo do vasto armazem, todo iluminado por rasgadas claraboias, defrontam-se uma dupla fileira de altas estantes, atravez das quaes o ar circula por um engenhoso e especial dispositivo evitando assim a deterioração da fazenda.”
Pois bem, ainda hoje se mantêm as magníficas estantes, cobertas das mais variadas qualidades de couros e cabedais, bem como de solas, colas, atacadores, fivelas, tacões, capas, diluentes, tintas, ceras, pomadas, ilhós, molas, palmilhas e ferramentas. Singelas escadas de madeira ladeiam as estantes, e por elas se sobe, até a um passadiço que permite andar a par das estantes mais altas, como o proprietário, Sr. Vítor Nunes, prontamente nos demonstrou.
Aqui o atendimento ainda é feito à moda antiga, com os bons costumes das velhas casas do Porto. O atendimento é simpático, conhecedor e sério, pleno de conselhos prestáveis. As encomendas ainda são atadas como antigamente, embrulhadas em papel pardo e com uma pega em corda entrançada, para maior conforto e segurança no transporte, como nos desmontrou o Sr. Vítor Nunes. Os clientes vão entrando, e são na sua maioria fregueses que sabem ao que vêm. Alguns transeuntes procuram palmilhas confortáveis, atacadores, ou pomadas para o calçado. Os profissionais da reparação do calçado pedem encomendas mais complicadas, fazendo proveito dos produtos especializados que aqui existem. Também surgem os artesãos, que avaliam as peles em busca do tom perfeito. E nisto aparecem por vezes os turistas, que observam a fachada com encanto e em raras ocasiões entram para adquirir um souvenir, como uma latinha de graxa. Enquanto atende os clientes, o funcionário Sr. Fernando, consulta o vasto catálogo e anota cuidadosamente o inventário.
E se perguntarmos quais as peles que se vendem, falam-nos nas de vaca, de porco e de borrego. Aqui há couro de todas as qualidades, liso ou lavrado, de cores neutras ou tingido para todos os gostos. O couro de vaca é polivalente, resistente, bom para sapatos, carteiras e roupas. O de porco é mais vulgarmente utilizado em forros para vestuário, bem como em utensílios para animais, como coleiras. A pele de borrego, vulgo carneira, é especialmente útil para o encadernamento de livros, e também para vestuário de alta qualidade, como luvas e casacos. É preciso analisar a pele adequada para cada caso, analisando as suas propriedades a nível de espessura, resistência e maleabilidade. Por exemplo, para as botas, quer-se pele mais rija. Para os sofás, pele grossa, mas maleável.
Percorrendo o comprimento dos balcões de madeira, podemos observar caixa ante caixa de produtos meticulosamente organizados, como assim se requer num armazém de tal dimensão. Estamos perante um paraíso para artesãos, que aqui se podem abastecer dos mais variados couros, cabedais e materiais para os trabalhar e preservar. Também aqui podemos encontrar tudo, mas absolutamente tudo o que poderíamos pretender para salvar aquele par de sapatos tão adorado e usado. É como nos foi dito: não há sapato que não tenha salvação.
A sala das traseiras, onde antes se estendiam elegantes guichets, terá sido fechada em meados do século XX para dar origem a uma secção de confecção e preparação de material, como se pode observar pela pesada maquinaria para cortar solas, e coser couros. Também aqui o tempo parece ter parado, e aparte dos caixotes com milhares de aparas de couro recentes, continuamos noutro tempo.
Um dos pormenores mais interessantes aparece de surpresa: é uma porta que esconde por trás dela uma mina de água, na qual, segundo o Sr. Vítor Nunes, é possível viajar com água até ao joelho pelas entranhas da cidade do Porto.
A empresa que tutela estes armazéns, F. Fernandes Guimarães & Cª Lda. , é propriedade do Sr. Vítor Nunes. O Sr. Vítor Nunes relatou-nos os sucessos de outrora e os desafios de hoje, que se centram num só tema: a sobrevivência. Fala-nos de um tempo em que fabricavam os próprios produtos, com elevados critérios de qualidade e trabalho artesanal, falando de carteiras, cintos ou até mesmo sandálias com solas de pneu de avião. A queda da indústria das confecções, em particular do calçado, bem como a concorrência das importações a baixo custo fez cair uma parte importante das receitas, e agora é cada vez mais difícil conquistar e manter clientela, que prefere muitas vezes fugir à qualidade e preocupar-se com preços baixos. Também a queda da indústria de curtumes em Portugal, que levou à extinção de vários fornecedores de qualidade, prejudicou o negócio. Manter este negócio é agora um desafio complexo, que pode ter de levar a empresa a reinventar-se, ou a assumir a derrota.
Deixamos a nossa homenagem a um estabelecimento que luta contra o tempo, e que é ainda hoje um espelho do Porto burguês, feito do comércio e indústria de outrora.