Nota: Visitamos o Euskalduna Studio em Maio de 2017, e entretanto precisámos de ir ao País Basco, bem como aprender mais algumas coisas, para por fim escrevermos a nossa carta de amor.
É possível escrever sobre o Euskalduna Studio sem mencionar um único prato – tenho a certeza. A experiência que é vivenciada neste espaço transcende o prato ou copo servido. A história começa bem antes do abrir da porta, através de um meticuloso planeamento de uma experiência gastronómica e sensorial. A experiência em si pode ser descrita como um estado de espírito de extremo entusiasmo, curiosidade e aprendizagem. Mas não falar da comida é injusto, até porque não a devemos ausentar do sítio onde habita.
Algures no meio da longa rua de Santo Ildefonso fica a porta do Euskalduna Studio. Por trás do privado biombo fica um espaço discreto, mas quente e acolhedor, rodeado por madeiras da parede ao chão. Destaca-se contudo a peça central, o longo balcão de pedra. Não vamos entrar em conversas, o balcão é o sítio onde se quer estar. Porquê? Porque um espetáculo vê-se na primeira fila. A proximidade cria uma espécie de intimidade com os recipientes abertos, as deslocações ao grelhador, o verter do molho, o montar do prato. Isto é muito educativo, pois nada aparece magicamente pronto à nossa frente.
A abordagem começa quando lhe perguntam se quer a carta virada para baixo ou para cima. Com a carta virada para baixo, aceitaria o menu de degustação sem saber quais os pratos que lhe seriam servidos. Com a carta virada para cima poderia escolher quais os pratos que queria. Fomos pela primeira. A par, é-lhe proposta a harmonização com vinhos, cervejas ou chás. Caso vão duas pessoas que partilhem várias coisas na vida, partilhem também os copos e peçam duas harmonizações diferentes.
Depois do prato nascer diante de nós, depressa segue uma detalhada e entusiasmada visita guiada pela proveniência e da confecção dos ingredientes, como o atum que foram buscar aos Açores, ou da temperatura a que cozinhou o ovo curado em açúcar. A evidente busca pelos melhores ingredientes que se pode encontrar nesta terra e arredores diz logo muito sobre a qualidade do que se vai provar.
Aproximadamente à terceira garfada de cada prato alguém nos perguntava se estávamos a gostar, se estava tudo bem. Esta humildade foi um ingrediente que acompanhou todos os pratos, mais tarde viemos a saber que quem personificava esta curiosa inquietação era o Chef Vasco Coelho Santos. O Chef Vasco e a sua unida e diligente equipa foram incansáveis em proporcionar um ambiente singular, íntimo com a comida, mas também relaxado e descomplexado. Há espaço para perguntas e respostas, de todo o tipo.
Mas vamos falar da comida, então.
#1 - sablé, pancetta e corvina
À mesa (ou ao balcão, diga-se) veio-nos um fino sablé coberto por uma camada de corvina ao natural finamente picada e complementada com pancetta. Esta composição fez-nos lembrar em certa medida a clássica truta com presunto Navarrense. O sablé de queijo foi o elemento umami que tinha na corvina a frescura e na pancetta a untuosidade, que apesar de em clara desvantagem numérica, prolongava todos os sabores.
#2 - cerefólio e pickle
A raíz de cerefólio beneficiou de um processo de confecção que a deixou bem doce, com um sabor levemente anisado, e com consistência de um puré. A acidez do pickle contrabalançou perfeitamente com a doçura do homólogo. Em suma, uma delicadeza reconfortante.
#3 - dashi
O dashi é um caldo japonês simples, límpido e rico em umami. A base deste prato consiste num caldo de katsuobushi, ou barriga de atum bonito fermentada e seca. Este bloco de peixe disfarçado de madeira é-lhe prontamente passado para a mão para que aprecie a sua estranheza e aroma maravilhoso. Para além de pureza e simplicidade, havia também outros elementos, como a salgadinha salicórnia. Contudo, o ingrediente que mais marcou o prato foi a cremosa gema de ovo que se mantinha à tona do caldo. A sua consistência semi-sólida permitia-lhe que pela acção do calor se fundisse lentamente no dashi. Esse resultado foi conseguido ao cozinhar a gema a baixa temperatura e ao fazer uma cura em açúcar. Sem dúvida, um dos melhores ovos que já comemos.
#4 - atum picado, flor e fruto de curgete
De seguida surge mas um prato magnífico, na forma de barriga de atum picada, acompanhada de flor de curgete recheada e curgete (fruto) salteada. A barriga de atum – de excepcional qualidade – veio directamente da Ilha do Pico. O Chef Vasco, sempre intrépido na procura dos melhores ingredientes, havia lá ido pessoalmente esquartejar o majestoso tunídeo. Só assim se explica a frescura e untuosidade do atum, que era sublime. Já a flor de curgete vinha recheada de um fresco e bem condimentado kimchi preparado na casa (como já seria de esperar) e polvilhada com noz de macadâmia ralada. Os sabores mais redondos do prato como o atum e a curgete foram assim muito bem contrabalançados pelo espevitado, mas equilibrado, kimchi.
#5 - gamba, carabineiro, caril
Eis que chegamos ao momento mais controverso da noite, e sobre o qual não conseguimos chegar a um consenso. Este caril desconstruía-se em 4 camadas, tendo como base um creme de cabeças de carabineiro, encimando de gamba rosa algarvia crua, chutney e um caril gelado – totalmente gelado. Foi também acompanhado de uma infusão de curcuma, quente. A extrema frescura da gamba conferia-lhe uma textura firme, necessária como base para tudo o que estava à volta. O sabor intensamente amariscado devia-se em muito ao excelente creme de carabineiro. O aroma e doçura do chutney de manga traziam algum exotismo sensorial ao prato. Já o caril propriamente dito, foi retirado de uma cuba de gelado e depositado por cima dos restantes ingredientes. O debate começa aqui: será que o frio gela as papilas e retarda a assimilação de sabores? Ou será que a contradição de temperatura entre o que se espera de um caril e o que este é, aliado à frescura do marisco, faz todo o sentido? Fica a cada um provar, e decidir. Uma coisa é certa: trata-se de prato de genial ousadia, e que vale a pena provar outra vez.
#6 - tainha, escabeche e jus
A tainha é um mugilídeo muito discriminado, mas o peixe que se apresenta para consumo vem de facto de alto mar. A que nos veio ao prato era sem dúvida fresquíssima, e a sua carne, que quase se assemelha ao robalo, mas mais untuosa, estava positivamente mal passada, adensando o sabor. O escabeche de cebola, bem como as cenouras e o apetitoso jus tornaram o paladar familiar e reconfortante.
#7 - peixe-galo e açorda de ovas
Indo buscar como inspiração à típica açorda de ovas e peixe-galo frito que se serve em muitos restaurantes da costa Matosinhense, este foi um dos pratos do cardápio com melhor a apresentação. O delicado e interciso lombo de peixe-galo descansava no meio de um caldo límpido que não só sabia a mar como mas até tinha a sua própria corrente marítima, fazendo com que pequenas e inquietas gotículas verdes pairassem como algas à deriva no mar. As gotas eram apenas um singelo e saboroso óleo de coentros. A açorda de ovas tinha uma fabulosa consistência arenosa que só minúsculos ovos quebradiços conseguem dar. Nisto sentia-se bem o sabor a mar, complementando o peixe-galo bem frito, de textura firme e sabor delicado.
#8 - pampo, alho e boi
Chegou então o momento do pampo – ou melhor, peixe-porco – é um peixe muito curioso e roncador, mas com pouca expressão na nossa gastronomia. Aqui surgiu-nos um pedaço alto e tenro, bem grelhado e com pele tostada. O sabor amanteigado do peixe foi bem acompanhado pelo quase gelatinoso e bastante delicado molho de joelho de boi, polvilhado com pungente alho frito.
#9 - rabo de boi e couve
O rabo do boi esteve sentado a estufar durante longas horas, sendo depois desfiado e reconstituído. Posto isto, apresentou-se numa uma escala de textura que se compreendia algures entre o extremamente e o absurdamente tenro. Não foi assim difícil alcançar todos aqueles sabores ricos de um estufado, na caramelização dos componentes da carne, da redução do vinho e vegetais e até algum fumado de origem desconhecida. Foi acompanhado por duas couves distintas em sabor e textura, com um molho de gema. As couves, contudo, não tiveram um contributo tão interessante como a estrela principal.
#10 - vitela, alho e salsifis
A maturação da carne é um processo algo longo (neste caso, de 45 dias), que resulta numa perda significativa de água e concentração de sabor. Durante este período as enzimas musculares acordam para o seu papel e tratam de degradar proteínas, glicogénio e gorduras, entre outros componentes, tornando a carne muito mais macia, e acima de tudo, mais saborosa. A carne estava no ponto ideal, com um grelhado simples e eficiente em destacar a excelente textura e a característica caramelização do exterior. Talvez precisasse de ser ela própria mais marmoreada para acentuar o trabalho da maturação, algo difícil quando se trata de vitela. O salsifis (ou escorcioneira), uma raíz que integra o antigo receituário português, e que infelizmente nunca tinha provado, estava perfeitamente integrado no prato. O exterior pelo seu quase chamuscado e o interior, cremoso e expressando o seu natural sabor a frutos secos.
#11 - morangos e flor de sabugueiro
Fechada a ronda de salgados, surge-nos uma sobremesa onde uma quenelle de gelado de sabugueiro repousa sobre morangos preparados de três formas. Temos então o morango fresco da época, fragrante e doce, morango em pickle e morango fermentado. As últimas duas preparações são de facto muito contrastantes com o que se espera de um morango fresco. Os processos sofridos trouxeram não só uma alteração de textura ao fruto, amolecendo-o, como também transformação do doce em azedo e talvez um pouco ácido, que se estranha um pouco, talvez por falta de hábito. De todo em todo, os morangos e o seu molho acompanharam bem o gelado de sabugueiro, que por si só poderia ser a sobremesa: leve, cremoso e muito aromático.
#12 - nêspera e cerefólio
A simplicidade tem sempre lugar à mesa, mesmo quando se vem a um local como o Euskalduna Studio. De surpresa e talvez por ser época, surge mais um momento. Num tronco de cerâmica negra, surge-nos singela meia nêspera descascada com delicadas raspas de raíz de cerefólio. A nêspera, no ponto ideal de doçura e a roçar o picante, foi amansada pela neve de cerefólio cru e levemente doce. Um momento simples e um casamento improvável, para memória futura.
Saímos inebriados, pensando em quão terapêutico pode afinal ser um jantar. Percebe-se bem o que se tenta criar dentro destas paredes, e estamos certos que a equipa do Euskalduna Studio cedo conseguirá alcançar uma querida estrela Michelin, afirmando-se como – apesar de já o ser – um dos melhores do Porto e do país.
Euskalduna Studio
Rua de Santo Ildefonso, nº 404
+351 935 335 301
www.euskaldunastudio.pt
Menu de degustação ( 10 momentos e eventuais surpresas): 80€