Jogo sujo
O uso de substâncias impróprias na comida cedo capturou a atenção e interesse dos povos, e de alguma forma tem estado sempre presente no que ingerimos. A falsificação alimentar é um problema eterno.
Quer fosse para tornar o já apetecível em irresistível, ou para falsificar a composição dos ingredientes, o uso de aditivos que alteram as propriedades dos alimentos tem persistido ao longo do tempo. Da manteiga ao chá, do queijo ao vinho, todos estes alimentos insuspeitos foram abraçados pela farsa gastronómica.
Sem dúvida que se olharmos para trás e pensarmos em todas as manigâncias que eram realizadas há alguns séculos atrás, é difícil não sentirmos um quanto espanto e preocupação. Não é preciso viajar mais do que um par de séculos para encontrar referências ao uso de substâncias tais como chumbo, mercúrio, sais de cobre, barro, cal ou até pó de osso na adulteração da comida [1,2]. Não esqueçamos que tanto o mercúrio como chumbo são metais pesados, e que em função da quantidade, o consumo destas substâncias pode ser letal para os seres humanos, o que já era sabido na época. O chumbo, que teimavam em adicionar a chás, farinhas, queijos, anchovas, vegetais, vinho e a especiarias moídas, servia, a par dos sais de cobre, para intensificar a cor natural destes alimentos [3].
A época posterior aos descobrimentos está associada à entrada de inúmeros produtos exóticos em território europeu, o que serviu de incentivo ao florescimento e melhoramento de técnicas de falsificação alimentar. Por exemplo, em Inglaterra, em meados do século XIX, chegaram a ser apreendidos lotes de chá em que 35% do seu peso correspondia a certos derivados de cobre. O famoso óleo de fígado de bacalhau, que já na altura era usado como remédio, era frequentemente composto parcial ou completamente por uma mistura de óleo de comboio e iodo [4]. Os doces representavam uns dos alimentos mais fortemente aditivados, contendo pigmentos à base de chumbo, arsénio ou mercúrio, que lhes conferiam as tão apetecíveis cores vivas que levavam ao delírio miúdos e graúdos [5]. Pobres crianças! Sofrer de diabetes seria a menor das suas preocupações.
No entanto, um dos exemplos que melhor ilustra a tal dimensão, derradeira aceitação e até dependência dos consumidores nestes pós mágicos é o caso do leite. O leite amarelo (resultado da adição de cromato de chumbo, que servia para disfarçar o leite diluído) era tão popular à época que as pessoas preferiam este leite ao leite branco (leite normal) por desconfiarem que este último era adulterado [2].
Apesar destas substâncias serem normalmente encontradas nos alimentos, também não era propriamente incomum encontrá-las noutras coisas, tais como o papel utilizado para embrulhar comida [6]. Enfim, o destino era de tal forma magnético que, de uma maneira ou de outra, não permitia à comida livrar-se dos malvados pós.
Em retrospectiva, podemos apenas questionar-nos…
Qual seria o sabor daquela comida?
Será que as pessoas estavam cientes do que estavam a comer?
Bem, vamos assumir que há coisas que são intemporais: há aqueles que sabem, há aqueles que não sabem, e há aqueles que não querem saber.
Porque é que a química importa
Este tipo de prática tornou-se de tal forma desmesurada e disseminada que os efeitos na saúde pública não tardaram a evidenciar-se, sendo muitos os relatos de doença e até de mortes. Não há dúvidas que a problemática falsificação alimentar foi um dos impulsos necessários para o desenvolvimento da química moderna, que muito se debateu para encontrar corantes sintéticos de origem orgânica, que ao longo do tempo substituíram os sais inorgânicos tóxicos. Diga-se ao longo do tempo, porque por vezes o tempo é longo. No início do século XX, cerca de 50% dos doces vendidos em Boston possuíam pigmentos de origem inorgânica, nomeadamente o chumbo. Também vários tipos de massa (vermicelli) eram aditivos com cromato de chumbo, para lhe conferir aquela bela cor amarela que associamos ao uso de ovos caseiros [7].
A comida tem tanto de orgulho como de preconceito
No seu todo, estes exemplos reforçam o papel intrínseco da comida, bem como alguns dos paradoxos do comportamento humano. Não podemos viver sem comida, mas também há quem não consiga viver sem a envenenar. A ideia algo errada de que a comida do passado era de alguma forma mais “pura”, que não continha os horríveis aditivos de hoje em dia, ainda está viva. Essa é a comida que a história não encontra com facilidade, e aparte de pequenos focos rurais em que o que se punha à mesa era o que vinha directo do campo, não era fácil encontrar comida fidedigna.
À luz do recente anúncio da Organização Mundial de Saúde (OMS), onde se refere que o consumo de carnes vermelhas frescas e processadas aumenta o risco de contrair cancro do colon, é importante analisar a indignação das pessoas que vêem as suas amadas tradições e cultura gastronómica a serem esmagadas pelo avanço científico. O que comemos, e como o comemos, é com certeza uma característica pessoal, bem enraizada na nossa mente. A comida acaba por definir uma parte importante da nossa personalidade, medos e ambições. A comida é tudo isto, na saúde e na doença, até que a morte nos separe.
Referências