O mês de Fevereiro foi bom para o Porto. Ao celebrar a terceira atribuição do melhor destino europeu foi ainda agraciada com a visita de Anthony Bourdain para a gravação de um programa da série televisiva dedicada a gastronomia local, Parts Unknown, que será transmitido no dia 25 de Junho na CNN. Até porque por muito alheio que se seja a estas andanças, há sempre um breve orgulho patriota que surge no momento em que se atribuem estes prémios. Não tendo sido esta a primeira vez que Bourdain esteve na Invicta, interrogamos-nos se foi agora que teve o seu melhor e mais autêntico Porto.
Quando a presença de Anthony Bourdain no Porto foi tornada pública o frenesim instalou-se em vários meios. Toda a sua visita esteve envolta num grande secretismo e cada evasiva selfie foi suficiente para fazer peças de televisivas e artigos de jornal. Consta que enquanto cá esteve não foi tímido nas suas escolhas. Provou tripas à moda do Porto (A Cozinha do Martinho), marisco (Marisqueira ‘A Antiga’) e lampreia (na casa de um pescador), foi dar um passeio ao Bolhão e ainda passou pelos cachorrinhos (Cervejaria Gazela). Quem conhece o Porto sabe que a ementa não estaria completa sem uma francesinha (O Afonso), e Bourdain pelos vistos também o soube.
Outrora (mais concretamente em 2002), olhou com espanto para os filetes de polvo com arroz do mesmo da Casa Aleixo, fitou nos olhos a cabeça de pescada cozida com todos, trincou petingas bem fritas e deliciou-se com as tripas no Rogério do Redondo (veja aqui o episódio).
Volvido ao nosso Norte, Bourdain não resistiu revisitar as tripas, essa poção de feijão branco e carnes várias, que se unem a macios estômagos de vaca para uma desgustação ímpar. Há 15 anos, provou a medo. Mas agora voltou, amadurecido e enrijecido como um marinheiro bem viajado. As tripas são as mesmas, mas o Homem mudou e… Ah! Quase ficou sem reacção perante aquele molho rico e cremoso, os macios feijões brancos nadando entre proteína de textura peculiar e de subtileza idiossincrática. Reza a lenda que a partir desse momento Bourdain quis que este prato fosse servido no seu pequeno almoço durante muitos anos – se pensarem, não foge muito a um ‘English Breakfast’. No meio da comoção quis inclusive mudar-se para o Porto, ter cá uma casa, casar com uma das senhoras do Bolhão e fazer as suas próprias tripas à moda do Porto.
A história da lampreia não terá sido muito diferente. Para um homem que venera a culinária que envolva sangue, foi mais do que natural. Imagine-se o semblante de Bourdain quando soube que nós (o colectivo) pegamos num escorregadio ciclóstomo, o sacrificamos e amanhamos no quintal, e o estufamos no seu próprio sangue e vinho, com, ou sem arroz. Tudo isto com umas belas vistas sobre a Foz do Douro. Ele viveu um sonho.
Depois disto o que é comer cachorrinhos, francesinhas e marisco? Todos esses pratos são fáceis demais.
Mas claro que o programa não podia ser só à base das deslumbrantes vistas do Douro, comezainas de tasca e cálices do vinho do Porto. Nem tudo é dormir no luxuoso Hotel Yeatman e desfrutar de uma cozinha estrela Michelin. Logo, com uma grande naturalidade, as coisas tornaram-se outra vez um tanto mais gráficas nos arredores do Porto, mais concretamente em Celorico de Bastos, onde Bourdain foi assistir à tradicional matança do porco. Porque é isto que as pessoas fazem, certo? Já não era a primeira vez (vejam aqui), agora certamente que o chef americano já estava mais ambientado e relaxado, para além de que já tinha assistido à matança da lampreia.
Resta apenas imaginá-lo deambulando uma vez mais pelas estreitas ruas do Porto, quase perdido, com a sua narrativa sobre as gentes do Porto, porque é que somos conhecidos como tripeiros e como resistimos valentemente às invasões francesas, e de muitas e outras formas como fizemos esta a cidade Invicta. Ainda falou da gentrificação, e como a pressão do turismo está a roubar o centro da cidade aos portuenses.
Não queremos dizer que o programa seja previsível, talvez quem conhece a cidade e o programa arrisque em adivinhar. Mas é esta a verdadeira cara do Porto, não o teríamos feito de maneira diferente. E para alguém que só cá esteve uns dias conseguir fazê-lo, é um grande trabalho.
Agora olhemos bem para esta visita e imaginemos quantas pessoas se deslocam especificamente ao Porto para comerem o forte e mais sonante da sua gastronomia: coisas tão simples ou complexas como delicados estômagos de vaca estufados com feijão branco e uma cabidela de lampreia.
Nós sabemos que os programas de Anthony Bourdain são mesmo assim. Mas aqueles que os assistem e deliram com tal audácia e privilégio estarão dispostos a descobrir e viver este Porto? Porque digo-vos, o Porto das tripas como prato do dia, das alegres peixeiras do Bolhão, e do pescador que o leva para casa e lhe confecciona lampreia, está a mudar muito rápido.