A História do Vinho do Porto: das Vinhas do Douro às Bocas do Mundo

Como qualquer boa história, a história do vinho do Porto tem um pouco de tudo. Um início singular, diferendos, alianças, polémicas, tragédias, e enfim, glória. É no fundo a história de três países (e outros tantos) que nas suas uniões e desuniões criaram um marco patrimonial único. 

A história do vinho do Porto é um tema recorrente durante as nossas tours no Porto. É impossível não se ficar curioso com as reviravoltas deste vinho singular. Escrever este artigo pareceu-nos a melhor forma de explicar alguns capítulos da complexa história de um vinho que impera nos nossos sentidos há mais de 400 anos.

O INÍCIO DAS VINHAS DO DOURO

Falar da história do vinho do Porto é impossível sem mencionar o local onde é produzido: o Douro. Um território de beleza estonteante e natureza difícil, que segue os contronos do rio Douro desde a fronteira com Espanha, no norte de Portugal. Uma região que ao longo de séculos exigiu uma determinação incomum para vencer a dureza do terreno, os desafios da inacessibilidade, a tempestuosidade do rio, e as vicissitudes da temperatura. Aquela que é, por mérito próprio, a região demarcada de mais antiga do mundo.

Existem registos arqueológicos que documentam a produção de vinho no Douro desde o tempo dos romanos (século II), tendo apenas sido generalizada cerca de um século depois. Não se sabe ao certo o estado da viticultura no Douro durante o domínio Visigodo e Suevo, mas supõe-se que se manteria, uma vez que praticavam um Cristianismo primitivo, onde o vinho seria já utilizado nas cerimónias religiosas. Posteriormente, seguiram-se quatro séculos de domínio árabe onde se terá mantido o desenvolvimento da viticultura na região — isto apesar de os muçulmanos não consumirem vinho, por ser halal — usando o vinho como moeda de troca e para exportação. 

De facto, a fundação histórica da viticultura no Douro poderá ter-se iniciado com os romanos, mas a consolidação dos vinhos da região terá começado apenas com a origem da nacionalidade.

Como é de conhecimento comum, o nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, tinha origem borgonhesa pelo lado do pai (D. Henrique de Borgonha). Após a morte do seu pai, terá sido criado pelo seu notável aio Egas Moniz, natural de Lamego. Propõe-se que Egas Moniz terá por questões estratégicas ajudado à instalação da ordem de Cister na região do Douro, para desenvolver a região, e porventura também para facilitar o reconhecimento da futura nação pelo Papa. Por volta de 1142 começam a surgir alguns dos quatros mosteiros de Cister que se implantaram na região (por ex. S. João de Tarouca), por ordem de S. Bernardo de Claraval, também ele de linhagem borgonhesa.

Assim sendo, há uma forte probabilidade de que tenham sido os monges de Cister provenientes do Ducado de Borgonha a desenvolver substancialmente a viticultura na região, adquirindo várias quintas, e trazendo castas e técnicas da Borgonha.

A tarefa não poderia ter ficado em melhores mãos. Afinal de contas, o trabalho dos monges cistercienses foi essencial para a criação da grande região vínica francesa que é hoje a Borgonha. Foram os monges que fundaram o vinhedo Clos de Vougeot — onde se localiza o Château du Clos Vougeot — que ainda hoje produz excelentes vinhos homónimos, e é o epicentro dos grand cru da Borgonha.

O principal objectivo da obra vitícola dos monges seria o de produzir o vinho de missa, cuja pureza e origem definida seriam essenciais para o acto litúrgico — o segundo objectivo seria, naturalmente, o provimento de fundos para o mosteiro. Se olharmos para um vinho de missa actual, vemos que se trata de um vinho licoroso (16º) e doce, cuja fermentação é parada com aguardente, em semelhança ao vinho do Porto. Isto intriga-nos… teriam os vinho de missa da época estas características?

É inegável que os monges cistercienses terão desenvolvido uma importante actividade agro-industrial que permitiu a fixação de população e o desenvolvimento do Douro. É quase certo que o seu contributo para a viticultura duriense tenha sido de uma importância inestimável. E é muito provável que a sua actividade tenha sido o advento da história do vinho do Porto. 

Uns séculos mais tarde, já o laborioso investimento dos monges cistercienses tem fama em todo o território. Em 1531-1532 o feitor do Rei em Lamego, Rui Fernandes, redige uma obra que descreve os arredores da região, mencionando os excelentes vinhos que lá se produzem, passíveis de serem envelhecidos mais do que 4 anos, e com esse envelhecimento melhorarem o seu carácter. Fala dos vinhedos e de 17 variedades de castas que por lá se encontram. Menciona também a quantidade abundante de pipas que por lá se produziam (15.000 pipas), e que os vinhos eram servidos na Corte e nas casas nobres, exportados por todo o país e também para o reino de Castela. Eram aí conhecidos como “vinhos de pé” ou “vinhos cheirantes”. Também João de Barros elogia os vinhos do Douro nas suas narrativas. 

Illustration from the Lorvão monastery massbook, 15th century | Iluminura do Missal do Lorvão, século XV

QUEM INVENTOU O VINHO DO PORTO?

O momento da concepção do vinho do Porto escapa-nos. Resta saber se ele nasceu, ou se foi (mais provavelmente) nascendo, fruto de experiências ao longo do tempo. Vale a pena por isso olharmos para as teorias que há muito circulam a esse propósito. 

Logo para começar, acho seguro afirmarmos que não foram os ingleses que inventaram o vinho do Porto —  o que não quer dizer que o vinho não tenha sido moldado ao seu gosto.

Alguns autores referem que em 1678, dois mercadores de vinho de Liverpool ficaram alojados num mosteiro de Lamego, onde o abade os surpreendeu com um vinho doce, forte e delicioso, ao qual havia adicionado aguardente durante a fermentação, e consequentemente tendo retido algum açúcar das uvas. Ficaram tão agradados com o vinho que adquiriram várias pipas ao mosteiro, que levaram depois para Inglaterra. 

Transporting port wine in an ox cart | Transportando vinho do Porto num carro de bois | Arquivo Municipal do Porto

Coincidentemente, é em 1678 que se documenta a primeira exportação de vinho designado como “do Porto”, tendo os ingleses exportado um total de 408 pipas. Estariam contabilizadas as pipas do mosteiro de Lamego? 

Seja como for, esta história contrasta em muito com a noção popular de que os vinhos seriam estabilizados com aguardente (brandy) antes do embarque, para aumentar a sua longevidade nas viagens marítimas. A utilidade desta fortificação explica-se porque aumentar o grau de álcool até certo nível reduz a actividade das bactérias acéticas (Acetobacter sp.), que caso contrário, no ambiente quente de um casco do navio, rapidamente converteriam o vinho em vinagre.

O paradoxo reside aqui: a adição de aguardente (fortificação) a um vinho já plenamente fermentado não o tornaria menos seco (ou seja, mais doce), mas apenas lhe aumentaria o grau de álcool. Ou seja, seria apenas um vinho de mesa com mais álcool. E quem supostamente teria adoptado esta prática aos vinhos do Douro, seriam os holandeses, que já o fariam a outros vinhos de embarque que adquiriam.

Logo, para o vinho se assemelhar ao que hoje conhecemos como vinho do Porto, a adição da aguardente teria de acontecer durante a fermentação, de forma a preservar algum açúcar das uvas. Evidentemente, isso teria de acontecer na fase da produção. E na altura, os ingleses não tinham quintas; dedicavam-se exclusivamente à exportação.

Isto dará força à teoria do abade, ou quanto mais não seja, que a fortificação seria algo que alguns viticultores já fariam, esporadicamente? Que teriam vindo a explorar mais, a pedido da clientela?

Esta afirmação pode sustentar-se com a ajuda primeiro tratado de viticultura português, o tratado “Agricultura das Vinhas (…)” de Vicencio Alarte, publicado em 1712, diz o seguinte:

“Na fervura do vinho he conveniente deitar ao menos meya canada de agua ardente a razão de pipa, porque lhe acrescenta os espiritos, faz os vinhos mais valerosos, & he grande mezinha, & na minha opiniaõ he hua das melhores.”

Resumindo: a prática de adicionar aguardente ao vinho em fermentação (fervura) já era suficientemente generalizada para aparecer num tratado de viticultura em 1712. Também parece que não era segredo que dava um bom vinho. Resta a dúvida: há de facto alguma invenção? Ou seria esta já uma prática relativamente disseminada entre agricultores (e monges) que veio a ser valorizada aquando a descoberta do potencial económico quando aplicada aos vinhos do Douro? 

Enquanto que não há dúvidas que o paladar inglês preferia o vinho forte e doce, a realidade é que até ao século XIX, a maioria do vinho do Douro não era fortificado—eram vinhos secos e austeros. O vinho do Porto não tinha ainda um conceito semelhante ao de hoje, mas nele já era reconhecida a qualidade do Douro. Apesar de haver também muita trafulhice pelo meio; ainda não se tinha dominado a arte de artificiar o vinho. Falaremos disso mais à frente. 

Women filling port wine bottles | Mulheres enchendo garrafas de vinho do Porto | Arquivo Municipal do Porto

OS INGLESES E O VINHO DO PORTO

Uma série de acordos e tratados comerciais firmados por D. Dinis com Inglaterra no século XIII levaram os mercadores portugueses a fazerem trocas de vinho, fruta e azeite por lãs e tecidos ingleses. Já no século XIV, os portugueses começam a cobiçar o bacalhau salgado dos ingleses, e a trocá-lo pelos vinhos verdes do Minho. 

Uns séculos mais tarde, já nos finais do século XVI, os vinhos do Douro abastecem as armadas de navios que paravam (ou eram construídas) no Porto. Seguiam igualmente remessas para Lisboa, de onde partiam para todo o mundo. A natureza mais estável dos vinhos durienses, também devido ao maior teor de álcool, torna-os ideais para a navegação, ao invés do vinho verde — mais perecível — do Minho. Por esta altura, a viticultura no Douro já fervilhava em expansão para suprir as necessidades de vinho de embarque. 

Com essa mudança de panorama, no reinado de Filipe II, os mercadores ingleses mudam a sua feitoria para o Porto, deixando progressivamente a menos proveitosa feitoria de Viana do Castelo. 

Merchants in Lisbon, 16th century | Mercadores em Lisboa, século XVI

Ainda assim, o primeiro registo oficial de uma exportação específica de vinho do Douro para Inglaterra surge em 1651, por um mercador chamado Richart Perez, que exportara 56 pipas de vinho de “asima do douro”. No ano seguinte, outros mercadores ingleses repetem a façanha, em maior quantidade.

É também por esta altura que se começam a fixar no Porto as primeiras empresas exportadoras de vinho inglesas — a primeira, a Newman, e depois as ainda activas Kopke, Croft, e Warre, por exemplo. 

A maioria dos comerciantes estabeleceu os seus armazéns na margem de Vila Nova de Gaia, ao contrário de uma minoria que escolheu a margem do Porto. Esta popularidade deve-se principalmente a uma manobra estratégica do rei D. Afonso III, que em 1255 deu carta foral e uma série de privilégios e benefícios a V. N. de Gaia. Desta forma, muita mercadoria escaparia à “Portagem da Terra” que teria de ser paga ao Bispo e à Igreja do Porto. De forma a contornar o pagamento deste imposto, muitos exportadores preferiram estabelecer-se do lado de V. N. de Gaia. Contudo, também o clima mais ameno de Gaia se provou melhor para envelhecer o vinho do que o do Porto*. O vinho seguia até aos armazéns de Gaia e Porto fazendo a perigosa travessia pelo Douro em barcos compridos, conhecidos como “rabelos”. Ainda assim, até ao século XX era possível encontrarem-se alguns armazéns de vinho do Porto na margem do Porto.

O vinho do Porto não era envelhecido no Douro devido ao fenómeno do “Douro bake”, ou seja, devido às temperaturas extremas do verão, o vinho adquirira sabores agressivos e indesejáveis.

Mas eis que a desgraça alheia veio dar uma ajudinha à causa portuguesa, criando um novo capítulo da história do vinho do Porto. A tensão crescente entre Inglaterra e França chegou ao rubro. Culmina num embargo inglês aos produtos (e vinhos) franceses em 1678 deixa a corte inglesa sedenta de vinho, e os mercadores ingleses auspiciosos no potencial de Portugal. Navegam em massa para terras lusas em busca de néctares de qualidade que satisfizessem o exigente paladar britânico.

Como quem procura sempre alcança… o volume de pipas de vinho que saíam de Portugal e do Porto disparou. Há quem afirme, no entanto, que muito do vinho que viajava de cá para Inglaterra era um embuste clandestino… claret de Bordeús, o vinho de eleição dos britânicos! Que malandros.

Ribeira, Porto

Passadas umas décadas, e no contexto da Guerra de Sucessão Espanhola, surge o Tratado de Methuen (1703), dando privilégio alfandegário em Inglaterra aos vinhos portugueses. A implementação desse tratado — cujos resultados não foram assim tão favoráveis a Portugal — impulsionou a viticultura nas terras lusas, e o Douro não foi excepção. 

A implementação do tratado cedo levou a uma nova corrida dos mercadores ingleses para fornecer vinho português, e isso trouxe alguns problemas. Para começar, havia uma escassez de vinho para tal procura, e também para colmatar a carência e maximizar o lucro, não faltavam quem seguisse atalhos e adulterações. Dá-se o exemplo da adição ao vinho de açúcar, vinho verde ou até pimenta. Para enrubescer a cor do vinho, deitava-se baga de sabugueiro. Seguiu-se — logicamente — o declínio do prestígio e a consequente desvalorização do preço do vinho do Porto, acto que não saiu sem resposta. 

Rua Nova dos Ingleses | English Factory (right) | Feitoria Inglesa (à direita) | AMP

O MARQUÊS DE POMBAL E A REGIÃO DEMARCADA DO DOURO

Entre queixas e acusações mútuas entre produtores e exportadores surge a intervenção de Sebastião José de Carvalho e Melo — mais tarde, marquês de Pombal — cuja resposta põe ordem no galinheiro. Em 1756, o marquês de Pombal funda a Companhia Geral de Agricultura e Vinhas do Alto Douro, cujo objectivo era revitalizar a imagem do vinho do Porto, bem como regulamentar a produção, fixar os preços, e controlar (e monopolizar) o seu comércio e transporte. 

Como seria de esperar, a criação da Companhia não foi bem aceite pelos ingleses e outros mercadores*. O problema é que estavam a lidar com o marquês de Pombal: um homem reconhecidamente determinado e autoritário.

* Nem tão pouco pelos taberneiros. Ou não controlasse a Companhia o comércio de vinho às tabernas, e tivesse ordenado o fecho de 90,5% das tabernas da cidade do Porto… passando de umas vastas 1000 para umas meras 95! Por essa razão, e também por receio do aumento dos preços do vinho, eclodiu uma revolta popular a 23 de Fevereiro de 1757, que foi castigada com mão de ferro pelo marquês de Pombal.

The Marquis of Pombal | O Marquês de Pombal

A desconfiança inglesa quanto às intenções da Companhia reflectia-se a nível diplomático, tendo o périplo argumentativo sido jogado de campo em campo entre os dois países, qual torneio de badminton. Acredita-se que os principais pontos de tensão seriam o medo de perda de domínio de exportação dos ingleses, as restrições de quantidade e época de compra, o transporte do vinho pelo Douro, e o monopólio da aguardente por parte da Companhia. 

Porventura a maior intervenção do marquês de Pombal no Douro e na história do vinho do Porto terá sido a criação da primeira região demarcada do mundo. Em 1756, a região vinícola do Douro foi escrupulosamente mapeada, dividindo-a em duas zonas: uma destinada à produção de vinho doméstico (vinho de ramo), e a outra para a produção de “vinho de feitoria”. Este último seria o vinho de melhor qualidade, destinado à exportação, e as zonas onde se podia produzi-lo estavam evidenciadas por marcos de granito gravados (marcos de feitoria, ou marcos pombalinos). Ainda hoje é possível encontrar cerca de uma centena de marcos de feitoria ao longo das encostas do Douro, mas não se pode dizer que a região demarcada ficou estática desde então. Seguiram-se várias alterações aos seus limites durante os séculos seguintes, estando hoje muito diferente da demarcação original de 1756, como se pode ver no mapa abaixo.

Original demarcation of 1756-1761 (yellow), in contrast with the current demarcated area (grey) | Região demarcada original de 1756-1761 (amarelo) em contraste com a actual (cinza) | © Museu do Douro
The Alto Douro region in the 19th-century, by the Baron of Forrester | O Alto Douro no séc. XIX, por Barão de Forrester

Até então, as garrafas de vinho do Porto eram de balão redondo, sendo impossíveis de deitar convenientemente, e consequentemente as rolhas poderiam secar e estragar o vinho. Mas eis que então se começa a dar uma mudança, começando a adoptar-se as garrafas alongadas e cilíndricas, que se poderiam deitar. Este aparentemente fortuito acontecimento viria a mudar o vinho do Porto para sempre, pois a partir daí foi possível proceder ao envelhecimento na garrafa, algo que até então só se fazia em casco. Assim nasceu o estilo vintage — talvez o mais glorioso de todos — estando o primeiro assim registado presente num catálogo da leiloeira Christie’s de 1773, referente ao vintage de 1765. Seguiram-se os vintages de 1775, 1790, 1797, mas o sistema ainda não funcionava como hoje. Só em meados do século XIX é que se criou o hábito de declarar um vintage apenas após uma colheita excepcional, prática que continua até hoje. 

The evolution of port wine bottles in the 18th century | A evolução das garrafas de vinho do Porto no século XVIII | Arquivo Municipal do Porto

VINHO DO PORTO NO SÉCULO XIX: MUDANÇAS E DESAFIOS

Com os pés já bem assentes no século XIX (por volta de 1811), o sector do vinho do Porto entra em crise. Ora, o seu mercado principal (e praticamente único) era o mercado britânico, e esse começara a retrair por uma série de razões. Não só os gostos dos britânicos começam a mudar — queriam vinhos mais baratos e menos alcoólicos — como também alguns aspectos da conjectura comercial entre o Reino Unido e Portugal não favoreciam a importação de vinhos portugueses, e também porque começaram a recorrer aos vinhos da concorrente Espanha. Por outro lado, a lavoura entrou em crise com o excesso de produção, que levou a uma queda de preços. Pelo meio, e para piorar a situação, Portugal entra numa guerra civil durante 6  anos. A crise no sector persistiu até meados  da década de 1860, onde as coisas começaram — ainda que por pouco tempo — a encarreirar para o Douro. 

Label of an 1815 port | Etiqueta de vinho de 1815 | AMP

Em 1820 surge uma colheita mágica que produz um vinho extraordinário, doce e encorpado. Os consumidores deliraram com este néctar exímio, e os produtores viram reavivado o interesse na fortificação durante a fermentação. Alguns mercadores — em particular o Barão de Forrester — não acreditavam que a fortificação dignificasse os vinhos do Douro, que preferiam ver secos e puros. No entanto, o gosto da clientela acabou por ditar o destino do vinho do Porto: haveria de ser doce, forte, e aromático. E assim a fortificação generalizou-se, criando o vinho que hoje conhecemos. 

A FILOXERA E O DOURO

Ainda o Douro recuperava do complicado desafio da praga do oídio (Oidium tuckeri) que aparecera em inícios da década de 1850 — e que veio a ser resolvido com o uso de enxofre — e eis que pouco depois surge o momento mais devastador para a viticultura duriense. A chegada da filoxera (Daktulosphaira vitifoliae) — um insecto microscópico que se alimenta das raízes da vinha em 1863 à Europa veio a mudar o panorama vinícola de todo o continente. Pois bem, a filoxera fora trazida inadvertidamente por botânicos britânicos curiosos que haviam importado espécimens (infectados) de vinhas americanas. Infelizmente, a espécie de vinha predominante do velho continente (Vitis vinifera) foi sendo totalmente dizimada pelo afídio. No Douro, o ataque filoxérico terá começado também em 1863, vendo-se uma queda acentuada da produção nos próximos anos. Mas só na década de 1870 é que a filoxera se espalha de forma descontrolada e fatal, arruinando a produção de vinho e aguardente. 

Phylloxera attacking the vine | Manifestação de filoxera na vinha

Os esforços para estancar a ruína da filoxera foram muitos, e a maioria em vão. Com o tempo veio-se a descobrir que as próprias vinhas que tinham trazido o problema para a Europa seriam também a solução. As espécies de vinha americanas (Vitis labrusca, Vitis rupestris, Vitis berlanderi e Vitis riparia) eram naturalmente mais resistentes ao insecto, logo a solução foi enxertar as nossas castas de Vitis vinifera em cepas americanas. Foi um trabalho longo e árduo, mas que salvou o Douro da inevitabilidade de se tornar numa paisagem de mortórios (vinhedos mortos). 

Até à década de 1890, poucos ingleses detinham propriedades no Douro. Mas com a devastação causada pela filoxera, muitas quintas trocaram de mãos a preços de saldo. Foi aí que alguns importadores como a Graham, Roope, Warre, e a Taylor, começaram a adquirir propriedades e a investir na replantação para salvar as quintas.

SÉCULO XX: O ADVENTO DA MODERNIDADE

O raiar do século XX viu um reforço da produção do vinho do Porto, que havia recuperado quase na totalidade da era filoxérica. Apesar da perda de vendas para o mercado brasileiro, os comerciantes de vinho do Porto viram um aumento da demanda pelos franceses, que até hoje são os maiores consumidores (bem, fora nós) de vinho do Porto. O vinho do Porto começa também a chegar ao mercado dinamarquês, holandês, belga, alemão, suíço, americano e norueguês com apoio de acordos diplomáticos elaborados pelo estado português. Por outro lado, surgiam imitações por todo o lado (mesmo dentro do país), tais como o “California port” ou “Tarragona port”, que competiam no mercado com preços e qualidade baixos, e desvalorizavam a imagem do genuíno vinho do Porto. Ao longo das duas primeiras décadas do século surgiram uma miríade de medidas proteccionistas, bem como tentativas de garantir a autenticidade junto dos países que o importavam. 

Surpreendentemente, o comércio do vinho do Porto não sofreu muito com a Primeira Guerra Mundial, apesar do estado ruinoso da política e economia portuguesa. Umas décadas depois, com a instauração do Estado Novo são fundados o Instituto do Vinho do Porto e a Casa do Douro, com o objectivo de controlar o comércio e fiscalizar a produção na região. Mas eis que surge um novo revés: com o estalar da Segunda Guerra Mundial, o comércio do vinho do Porto vai de novo ao fundo, e assim se mantém à década de 1960. Até lá, muitas empresas de exportação fecharam as portas ou trocaram de mãos. Mas nos anos 60 e 70, o comércio retoma os valores pré-guerra, e vai crescendo sustentavelmente. Entretanto, o Douro começa a mudar mais depressa do que nunca; ao abrigo do crescimento e do desenvolvimento tecnológico e científico, desponta o Douro que hoje conhecemos. Aparecem novas formas de fazer vinho, novos estilos, novas paisagens; de facto, a história do vinho do Porto está sempre em mudança. Mas essa história ficará para o próximo capítulo.

Expansion of port wine in the world since the 17th century | Expansão do vinho do Porto desde o séc. XVII | Arquivo Municipal do Porto

Quem pensa em vinho do Porto sabe-o com história, carácter e prestígio. Muitos também o verão como estático, encerrado em si, imune à mudança. Mas no seu percurso foi ora integrando ora resistindo às ânsias dos mercados, bem como as alterações físicas do meio até novas práticas de produção. De tal forma que o vinho do Porto de hoje não é o mesmo de há 100 anos. É agora uma bebida que muito provavelmente está no seu melhor de sempre, quer nas práticas, quer na forma como se apresenta aos consumidores. Resta aguardar pelo vinho do Porto do futuro.

Celebrar o vinho do Porto é acima de tudo bebê-lo e perpetuá-lo. É pois curioso que a bebida que mais orgulho nacional exalta apenas em 2017 viu no mercado interno o seu maior consumidor. Resta saber se este aumento se deve aos turistas ávidos e curiosos pelo prometido néctar envelhecido, ou se seremos nós portugueses os responsáveis pelo incremento.

(some) references

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